Um puto em St. Gilles
Soube de Bruxelas apenas com três semanas de antecedência, a partir de um telefonema recebido da Hungria numa manhã de semana em que achava que o meu único trabalho seria avançar um parágrafo da tese
Acordei e estava cheio de calor. Puxei o lençol para o lado, mas tinha sede. No sonho estava num prédio, à espera de ir fazer exames, quando me apercebi que não estava a usar uma camisa. Parecia que havia uma à minha espera num outro piso, que já era um hotel. A seguir, só me lembro de estar num helicóptero que parecia um metropolitano, com uns amigos, a observar pela janela um edifício que era um barco. Levantei-me da cama para ir beber um copo. Olhei pela janela do quarto e vi o pátio, com o canto da trepadeira iluminado. Comecei a olhar melhor, porque não percebia de onde é que vinha a luz (seria da lua?). E era mesmo no canto, delimitado perfeitamente: um altar de verdes, preparado para uma chegada – ou será uma partida? Olhei por mais uns momentos, à espera. Depois voltei a deitar-me e a tentar adormecer, com sucesso intermitente.
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Foi em St. Gilles que vi o Kelvin marcar o golo. O bar era de portistas, portanto pode dizer-se que estava a pedi-las. A acompanhar-me estava o José Preguiça, guitarrista d’Os Velhos, que fez a gentileza de me vir visitar a Bruxelas por aqueles dias. O Preguiça era (e suponho que continua a ser, onde quer que a vida o tenha levado) sportinguista, e portanto riu-se do sucedido. Acompanhou-me depois a um bar bastante simpático entre Matong e Ixelles, onde afoguei as primeiras mágoas benfiquistas da semana – as segundas iria afogá-las na banheira de Amesterdão, juntamente com o pai e o irmão do Filipe Almeida, crítico conservador da cena cultural lisboeta, depois do golo do Ivanovic.
Apesar de toda a trama futebolística, os azuis do Porto e do Chelsea não me lixaram a estadia bruxelense, uma inesperada surpresa no meu trem de vida.
Soube de Bruxelas apenas com três semanas de antecedência, a partir de um telefonema recebido da Hungria numa manhã de semana em que achava que o meu único trabalho seria avançar um parágrafo da tese de mestrado. Uma voz profissional do outro lado tirava-me do sono. Bom dia, vimos o seu currículo, e gostávamos de o contratar para um estágio – esperem, viram o meu quê? Foi assim, mesmo: o resultado de um email enviado do nada a partir de uma biblioteca universitária norte-americana, numa tarde cheia de neve, e passados dois meses com um Natal pelo meio estava a acordar às dez da manhã, em Lisboa, para fazer um teste, marcar duas entrevistas, e em menos de vinte e um dias apresentar-me ao serviço em Bruxelas, para aquilo que se tornou no meu primeiro emprego, como analista de governo societário.
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Aterrei em Bruxelas no dia 4 de fevereiro, com chuva e neve. Comecei por morar em Louise, em casa de uma amiga de amigos. Nem quinze dias passaram quando arranjei um apartamento, que dividi com mais três pessoas: a Júlia, o Diogo (portugueses) e a Ana (espanhola). Mudei-me mais ou menos na altura em que fiz vinte e cinco anos e fui de carro com a minha mãe conhecer a Antuérpia, as igrejas cheias de Rubens e semelhantes, bem como o museu do mar. A casa para onde fui ficava em St. Gilles, a poucos minutos a pé da Maison du Peuple, no Parvis.
As pessoas vão para Bruxelas com o sonho de trabalhar na bolha das instituições europeias, semelhantes centros de poder soberanos (embaixadas, representações de outras instituições ou associações comerciais) ou em algo que os aproxime das mesmas (centros de estudos ou de lobby). Eram o caso da Júlia (a começar estágio), do Diogo (a terminar estágio), e da Ana (jornalista na equipa do Parlamento). A sua vida passava-se no centro, entre o Belayrmont, Place Lux e Jourdan, e bares adjacentes.
A minha vida, pelo contrário, era a do sector privado, composto por jovens como eu que iniciavam as suas carreiras profissionais, vindos de toda a Europa para vender, analisar ou gerir o governo corporativo de investidores institucionais, ou então de pessoas que já tinham passado pela bolha de Bruxelas e que gostavam desesperadamente de lá voltar, olhando para o trabalho que lhes calhou nesta empresa familiar mas pertencente a um império multinacional das finanças como uma “forma” de se manterem na capital Belga. O escritório ficava em Boisfort, a uma viagem de vinte minutos de elétrico, para onde me dirigia de manhã e de onde, a partir das cinco e meia ou seis, saía, de novo para o centro.
Os meus dias úteis em Bruxelas eram, assim, just Louise, como na música do Dylan: emaranhado no movimento do elétrico ia ouvindo discos ininterruptamente: desde o Yankee Hotel Foxtrot dos Wilco, ao Modern Vampires of the City dos Vampire Weekend, do Grande Medo do Pequeno Mundo do Samuel Úria aos Peter, Paul and Mary, do Phosphorescent aos Golden Grrrls, e ao disco Fade dos Yo La Tengo. No regresso, quando não ia com colegas jogar à bola (equipa do Sul da Europa contra a equipa do centro-Norte), repetia a dose de discos, e quando o tempo estava bom aproveitava para ir a pé, a partir da ULB, acabando por parar muitas vezes em Ixelles ou na Flagey, onde me instalava no pub irlandês local para ver jogos da bola – sobretudo, a caminhada europeia do Benfica.
Na maioria dos dias, depois do trabalho, ia para casa, com uma cerveja comprada no supermercado, e fazia o jantar, que comia cedo (pelas sete horas, sete horas e meia). Depois, fazia como ao fim-de-semana, e ia passear.
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Passeei muito em Bruxelas, agora que me lembro.
O meu passeio favorito era ao sábado de manhã, pelas lojas de discos, novas e antigas, no centro, junto ao Manecas e à Grand Place. Mas também gostava de ir ao Museu Kadinsky, ou simplesmente deambular pelo centro entre programas marcados com amigos ou colegas de trabalho. De noite gostava muito de ir à Cinemateca, onde vi Greed de von Stroheim com acompanhamento ao piano, o Espelho de Tarkovsky (que viagem, que viagem!) e, já no fim da estadia, revi no grande ecrã um dos filmes da minha vida: Mulholland Drive.
Não foi só na Cinemateca que tive cinema: recordo-me de num feriado qualquer ir a Flagey assistir a uma reposição do Wild Bunch de Peckinpah. Em termos de concertos, fui parco – mas consegui levar o meu colega Federico, um italiano de ascendência colombiana, a ver os Yo La Tengo a Borse. O Bernardo, outro amigo, levou-me a ver a Isabel Abreu e o Gonçalo Waddington a atuarem numa peça do Tiago Rodrigues, Três Dedos Abaixo do Joelho, no Atelier 210.
A minha Mãe levou-me a jantar ao Vieux Saint Martin no Sablon, onde comi um tártaro delicioso. Fora o passeio familiar a Antuérpia, tive uma noite de boémia em Leuven, no final da estadia, convidado por um colega italiano que lá vivia com a namorada, e onde acabei a noite a ouvir as lamentações de Sílvio, o turco convertido ao judaísmo que era um ás do basquetebol. Não fui passear mais pela Bélgica, apesar de já conhecer Bruges e Gent, em outras vidas.
Para além da Mamã, visitaram-me vários amigos: o Snu, a Elisabete, e o Graça (os três no mesmo dia, depois da minha noite boémia em Leuven), os manos Avelar, e o Brogueira. Passei algum tempo com locais, como a Patrícia e o Bernardo, e fui jantar com o Miguel e a Sabine. Não consegui ser convencido pelo Mário Pedro de que os pasteis de nata da Garcia eram bons: achei que a saudade lhes estava a tolher o julgamento. Encontrei o Guilherme na Place Lux ainda na primeira semana, que por sinal era a última dele. Nunca mais o vi.
Em seis meses fiquei com uma boa pegada da cidade, entre a procura pelo melhor quiosque de frites, as visitas a amigos, os vários bares locais (dos quais apreciava especialmente o de Flagey e o Potemkin), os belíssimos parques (Cinquentennaire e La Cambre) e, claro está, o gosto por deambular (será essa a melhor tradução para drifting que encontro?) entre pontos, horários, momentos e pessoas. É talvez a minha memória mais pujante desse tempo: a rua, o andar, e o tempo.
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A dado momento, por motivos pessoais, comecei a viajar para Londres de comboio. Apanhava o Eurostar e lá ia eu para aquela que para nós, jovens trabalhadores, era a verdadeira capital europeia, cosmopolita e global. Creio que, ao todo, fui e voltei pelo canal da Mancha três vezes, no eixo Gare du Midi - St.Pancras.
Recordo-me de uma dessas visitas, a primeira, em que fui almoçar com a Su-ki, uma colega de mestrado em Edimburgo, a Brick Lane. Su-ki era uma sul-coreana skater em 2011 que ficou a trabalhar no Reino Unido, e que dois anos depois era uma modelo com saltos altos cor-de-rosa. A vida tem coisas engraçadas. Contudo, ainda tinha uma amizade bastante forte com Phill, o canadiano de Newfoundland que me iniciou em Don DeLillo e Philip Roth. Ligámos-lhe a partir do restaurante, e achei-o genuinamente contente por falar connosco. Espero que esteja bem, onde quer que esteja.
Nessa estadia encontrei ainda o Tumas em Brick Lane, junto à Rough Trade, e fiquei a dormir em casa do Graça, em Hackney (ou seria Stratford). Gravei as vozes do Lá na Escócia no quarto do Graça, e depois ele levou-me a jantar a casa do Belarmino, um conterrâneo seu algarvio (onde era a casa? Seria em Camden?). O Belarmino vivia com uma rapariga japonesa muito alta e simpática, que tinha a irmã mais nova a visitá-la. O Belarmino tinha “uma voz de anjo” segundo o Graça, e se ouvirem a versão que ambos fizeram de Massachusetts dos BeeGees para homenagear a sua cidade natal, Albufeira, podem perceber o que ele quer dizer. “E as luzes todas / baixam em Albufeira”, e as luzes todas baixavam em Camden, porque como escrevi no blog por essa altura (mentira: foi dois meses antes, na minha primeira semana em Bruxelas):
A noite é a mesma seja lá que idade tu tenhas. É a mesma no teu dia de anos e no dia a seguir aos teus anos. A noite é a mesma em qualquer cidade a que tenhas ido parar por vontade ou ao acaso, não passando dum repositório de ruas e mais ruas ligadas por algum acaso ingénuo ou caminho esclarecido, cortado por esquinas e praças, rasgada por avenidas, labirintos de cimento, tijolo e betão que escondem pequenos tesouros, jardins pequenos e cuidados, e povoada por uma série de figuras, loucos honrados ou sérios perdidos, mulheres bonitas e mulheres cansadas, homens de respeito e homens caídos. A noite é sempre a mesma que a tua cidade — porque tu tens uma cidade — te ensinou: um museu que vive a sua exposição diária em completo movimento, estabelecendo ao cuidado dos outros que como tu se movem e se cruzam pelas linhas traçadas há que tempos, tanto tempo que já nem vale a pena contar, uma série de artimanhas e enredos que povoamos como a vida nos manda. A noite é mais antiga que as cidades, mas não muito mais, porque sem as cidades não poderia existir da forma que existe: como uma pequena caixa de segredos mais ou menos incríveis e mais ou menos terríveis que vamos guardando para nós mesmos e para os outros que nos acompanham na sua vivência. A noite é um sono e um passeio, uma coisa “que bate”. Tal como nós, uma coisa “que bate”. A noite pode começar numa almofada ou numa cerveja, acabar numa cama ou num banco de jardim, mas estará sempre contigo, faças que viagem fizeres. E talvez isso não te arrepie, ou já te tenha deixado de emocionar. Mas é sempre bom quando olhas pela janela, segundos antes de fechar os olhos, e sentes aquele calor que só uma companhia maior te pode oferecer.
Da segunda vez que fui a Londres trouxe um fraque comigo às costas – escrevi no blog: o puto com o fraque às costas, numa alusão ao The Boy with the Arab Strap. No dia anterior tinha sido vítima de uma virose gástrica que assolou toda a Bélgica, mas consegui recuperar a tempo. Fui a Londres e apanhei um avião para a Madeira, porque era vinte e cinco de abril e um amigo resolveu casar-se lá. Lembro-me de estar no táxi a ir do aeroporto para o Funchal, e do sol estar a cair e eu pensar: porra, Portugal. Dancei, festejei, e depois voltei, com o fraque, para Londres, antes de ir para Bruxelas.
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Durante a minha estadia um Papa renunciou e outro foi nomeado outro. José Sócrates regressou à televisão para ser entrevistado na RTP, a Europa estava ainda a tentar lidar com a crise da dívida, e no Game of Thrones deu-se o Red Wedding. O meu único ato jurídico-político de renome foi um acórdão do tribunal constitucional sobre o orçamento nacional. Não visitei nenhuma instituição europeia, não fiz contactos, e as minhas discussões políticas limitaram-se à mesa, com amigos e desconhecidos. Preferi, como Ancelotti, as “copas”, futebolísticas e sentimentais. Não quer dizer que não estivesse atento, sobretudo ao que se passava em Lisboa e na supervisão da nossa situação financeira. A atenção talvez tenha sido traumática – ver a bolha de perto, mas não dentro – ao ponto de, três anos depois, ter entregado um projeto de doutoramento para analisar o sistema europeu de supervisão dos orçamentos nacionais.
Apesar de estar em Bruxelas, não me lembro de pensar muito no meu Pai – com exceção da vez em que passei junto a um desenho da Marca Amarela numa casa do centro.
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Tive a oportunidade de ficar na empresa no final do estágio, mas não me interessou. Sentia que Bruxelas era muito agradável e confortável, mas não era isso que eu procurava (será que alguma vez foi) naquela altura. Não achei Bruxelas a Europa, mas sim uma parte engraçada deste mosaico continental em que estamos. Despedi-me com muita simpatia de todos, mas a correr – na altura ainda não sabia dizer adeus (será que sei, hoje?). Queria, como sempre, o verão – mesmo que tivesse uma tese de mestrado para acabar.
Não me arrependo de ter regressado. O caminho faz-se caminhando, como diz Machado, e assim foi comigo, num país a sair de uma emergência financeira, enquanto estagiário de advocacia e colaborador de um blog sobre futebol. Nunca mais voltei a Bruxelas. As luzes não farão nada pelo meu regresso, mas talvez o façam quando trouxer a Carol à cidade, um dia destes, para passar um tempo querido e mignon no oeste europeu.